Em apenas um dia

 Mª Joelma Gomes Ferreira [1]

Depois de uma semana intensa no programa de residência que me apresentou novos espaços e pessoas, resolvi sair no meu segundo domingo na cidade do Rio de Janeiro e direcionei o meu corpo para a Floresta da Tijuca. Eu precisava sentir sua energia, ouvir os sons, tocar suas plantas, caminhar no ritmo vagaroso entre suas trilhas, guiada pelos instintos. Eu carecia daquele lugar e do lugar de aprendiz em que a floresta delicadamente se reforçava no meu ser. Como eu sou feita de cachoeira, minhas emoções se movimentaram feito água, que do olho d’água borbulha, aflora conquistando espaço, contorna obstáculos, até expandir e encontrar o ponto de equilíbrio e de evasão.

Desci Santa Teresa em direção à Floresta da Tijuca embriagada de tanta emoção que, por um instante, senti a presença da minha avó do meu lado, caminhando de mãos dadas comigo, igualzinha fazia quando nós íamos para o mato colher caju e catar licuri, em Acupe, na Bahia. Era com uma mão na minha e a outra com facão, abrindo e limpando o caminho. Sempre ensinando e apontando o lugar que eu devia pisar e de qual maneira pisar, nunca com muita força, mas sim, com leveza e respeito à morada de outros bichos e seres. Ela me ensinava, a cada gesto e olhar, a ser gentil e amável com a natureza que permite a nós o direito à vida, dotada de plenitude. Tanto que rememorei o provérbio africano que ela sempre falava, o qual diz: “nenhuma árvore grande chegou ao tamanho que está sem antes ter sido semente”. E sendo semente (aprendiz), segui…

Neste dia, ao sair da confluência de sons que habita nas encruzilhadas da cidade, me permiti, ao adentrar a floresta, entrar no transe poético e ancestral, sentir que estava numa experiência dançante. Sendo embalada pelo som dos atabaques, pelo cântico rezado, uma sinfonia composta e entrelaçada pelos encantos dos tempos, dos ventos, das correntezas que fortes e frias ecoavam o canto de Mameto Dandalunda, uma playlist composta, exclusivamente, para alimentar e estabelecer o equilíbrio do meu orí, que constantemente esteve imerso no turbilhão de estímulos que adoecem, se embaraça em raízes que não são da cura.

Sentindo-me em processo de cura, comecei a caminhar, a reparar nos detalhes das folhas, suas cores e formatos, nos troncos grossos, altos e nas suas cicatrizes desenhadas pelo tempo e pelas escritas humanas, estas datadas e com nomes. Havia tantos corações tracejados que parecia impossível não imaginar as juras de amor atrelada à subjetividade do “que seja eterno enquanto dure”.

Voltando para as belezas que preenchiam meus olhos, pude notar as escritas da floresta e, como o cruzamento das mais variadas espécies de árvores, as faixas de terras e as camadas de folhas secas formam uma aquarela de tons quentes que se misturavam como num caleidoscópio que muda a cada movimento. Não sei se consigo exportar adequadamente o espiralar desta experiência que funcionou para mim como um ebó que alimenta o sagrado e que nos fortalece, mas espero relatar de forma simples e profunda. Até porque narrar sobre esta experiência exige de mim algumas travessias pelas dificuldades que estão imbricadas no processo de autopercepção e do despir-se diante de mim e do outro.

Rompido o silêncio, regozijei de felicidade quando perto de uma cachoeira ouvi o ritmo cabila soar da floresta, como se estivesse um atabaque sendo tocado para os inkesses, moradores sagrados deste habitat que guarda os elementos que curam e que purificam. Tanto que, por todo canto, havia ebó arriado, territorializando e demarcando práticas ancestrais na diáspora africana.

Ao flanar entre estas energias, pude perceber, meio que de supetão, a dança de Dandalunda na cascata de água que, linda, refletia o brilho, o volume, o movimento e a transformação. Bebi da sua água sagrada, também líquido amniótico, desejando a dissolução da insegurança, da culpa, dos medos, das memórias traumáticas, ao mesmo tempo em que, delicadamente, cantei a restauração das minhas fertilidades e a abertura do meu portal criativo.

Depois de horas nesta imersão, chegou o momento de retornar para Vila Laurinda, mas ainda no caminho, nas proximidades da curva do S, fui atravessada por uma mulher preta que estava na companhia de três crianças. A criança que parecia ter 12 anos empurrava o carro cheio de garrafas cheias de água, mas, pela sua expressão, aquilo não era só água, era estratégia de sobrevivência, garantia do banho. A mãe levava na cabeça forrada com lenço, sobre a rodilha de pano, um garrafão de 20 litros equilibrado pelo instinto materno, já que a sua mão esquerda segurava a mão da outra criança que carregava bem próximo ao seu corpo tão pequeno uma garrafa de 2 litros. A terceira criança, uma menina que usava um vestido rosa com mangas compridas, segurava duas sacolas plásticas: uma com garrafas menores com água e a outra com algo que parecia banana. Ela caminhava no ritmo apressado, obrigando o seu corpo, ainda em desenvolvimento, a ser resistente e rápido.

Por alguns minutos, me reencontrei naquela menina, revivi parte da minha infância que também foi marcada pela busca constante de águas na fonte do senhor Rosalvo, que permitia que as pessoas abastecessem as talhas de suas casas. Para além disso, é vergonhoso perceber que a mesma dificuldade de acessar água ainda permanece de modo tão violento. Ouvi dizer que nas favelas do Rio de Janeiro a água não chega ou custa a chegar.

Na fronteira, na delimitação que separa dois territórios – floresta e cidade, há discrepância, luto, ausência, assim como existem saberes, cuidado e tempo. O tempo que circunda a vida de todos, o tempo que habita em mim e o tempo que cada sujeito leva para se encontrar. O que pode ser

Em Apenas Um Dia!

Ebó: territorialidade na diáspora africana

O objetivo central deste ensaio [2] é pensar a territorialidade na Floresta da Tijuca (figura I), na cidade do Rio de Janeiro, [3] a partir dos ebós [4] arriados, sobretudo pelos adeptos das religiões de matriz africana, que produzem territorialidades não somente nas áreas verdes, como nas encruzilhadas, nas estradas e nas diferentes paisagens urbanas. Corrêa (2006, p.52) salienta que diferentes práticas culturais “[…] apresentam uma riqueza de informações que nos permitem estabelecer análises socioespaciais, contribuindo dessa feita para a compreensão acurada da sociedade e do espaço por ela construído”. Mas quais são as análises socioespaciais ou leituras territoriais que podemos realizar a partir do ato de arriar ebó? O que esta manifestação religiosa demarca na diáspora africana? 

Essas inquietações, que movem a escrita deste texto, são observações que surgiram durante o intercâmbio na cidade do Rio de Janeiro e mediante leituras das grafias espaciais na Floresta da Tijuca, ou seja, das ações humanas grafadas e territorializadas nestes espaços.

Em princípio, é importante ambientalizar, à luz da ciência geográfica, o conceito de território e de territorialidade, para fundamentar a construção textual. Com base no autor Rogério Haesbaert (2004), o território é reconhecido mediante as múltiplas relações de poder nele sobrepostas, por diferentes sujeitos/agentes que dialeticamente se apropriam e produzem uma gama de manifestações. Neste sentido, o território “[…] imerso em relações de dominação e/ou de apropriação sociedade-espaço, “desdobra-se ao longo de um continuum que vai da dominação político-econômica mais ‘concreta’ e ‘funcional’ à apropriação mais subjetiva e/ou ‘cultural-simbólica’” (HAESBAERT, 2004, p. 95-96). Enquanto que a territorialidade sob a perspectiva de Sack (1986, p. 219) “[…] não é apenas um meio para criar e manter a ordem, é uma estratégia para criar e manter grande parte do contexto geográfico, através do qual nós experimentamos o mundo e o dotamos de significado”. Esta se vale, portanto, da valorização/mobilização do sentimento de pertencimento e dos contextos identitários e culturais de cada indíviduo ou grupo social.

Direcionando o conceito de territorialidade para compreender as experiências religiosas individuais ou coletivas, é, sobretudo, caminhar pelos itinerários que constituem e delimitam o território. De fato, segundo Rosendahl (2005), é pelo território que se encarna a relação simbólica que existe entre cultura e espaço. A autora ressalta “[…] a territorialidade está fortemente impregnada de um caráter cultural. É por intermédio de seus geossímbolos que a religião de um grupo imprime marcas que identificam e delimitam um dado território” (ROSENDAHL, 2005, p.12934). Entrelaçando as abordagens, os ebós são a territorialidade afro-religiosa que manifesta o simbólico e que reforça a presença do sagrado em qualquer lugar que for arriado.

Na religião de matriz africana, o ebó é uma oferenda dedicada aos orixás, composta por vários elementos e alimentos que juntos nutrem os rituais de benção, cura e agradecimento. É também aquilo de melhor que temos para oferecer. É comunhão, realinhamento, limpeza, cuidado e autoamor. Ao mesmo instante que pode ser considerado enquanto sistema complexo de comunicação que tende a elucidar muitas interpretações e narrativas. Na geografia, é facilmente identificado como um geossímbolo [5] que imprime significações culturais espaço-temporais e que semiografam identidades. O ebó é fundamento de que constituem atributos necessários à consolidação da fé afro-religiosa.

Já num enfoque epistemológico, o ebó, conforme assinalado por Rufino (2019, p. 88), é “[…] um procedimento que aviva as razões no encante para que o conhecimento seja cruzado, engolido por outras perspectivas e restituído de maneira transformada”, e esse encontro é afetado “[…] diretamente sobre as relações de saber/poder, produzindo movimentos com forças de construir outros fluxos de conhecimento” (LIMA, 2021, p. 44-45). Para Ferreira e Fraga (2021), o ebó como um conjunto de conceitos é compreendido a partir da tessitura dialógica que reúne diferentes formas de enunciação, as quais estão ancoradas na decolonialidade, esta que segundo Rufino (2016, p. 63), “[…] é para além de um empreendimento político e epistemológico comprometido com as transformações radicais e a transgressão dos limites mantenedores do poder […]”. Desse modo, Lima (2021) ressalta a capacidade que o ebó possui na reconstituição e na formação de lugares, reforça a sua importância nos cruzamentos identitários, estes que vislumbram diversas dimensões e vivências e experiências.

É nesta perspectiva que a Floresta da Tijuca e os ebós estão sendo observados, como elementos interconectados. Pode-se dizer que a presença constante dos ebós no entorno e dentro da Floresta reforça a importância deste espaço para realização das práticas afro-religiosas na diáspora africana. Santos (1998, p.132) enfatiza que quando os religiosos frequentam “[…] os fragmentos Florestais, o fazem em busca de recursos outros que os materiais. Procuram-nos porque neles localizam forças de caráter espiritual, a partir de universos simbólicos densos, forjados e modificados no processo social, nas aspirações e nas lutas dos grupos sociais”. Com base nesta leitura, é possível compreender as Florestas enquanto morada das energias e forças naturais que equilibram vidas fragmentadas pelo apagamento das memórias afetivas, as quais guardariam os valores e os cuidados com o meio ambiente.

Além disso, a Floresta da Tijuca, lócus da pesquisa, não representa tão somente um habitat, um ecossistema, ela alimenta o comportamento ancestral e religioso. Ela constitui, na essência, um território mantenedor de uma herança cultural africana que, pela sua importância histórica, social, geradora de elemento necessário à vida, sobretudo à vida urbana, imprime sua imponência enquanto patrimônio ambiental da cidade do Rio de Janeiro. 

Ao escrever sobre as relações ancestrais em África, Sobunfo Somé (2009) aborda a importância dos rituais na construção de relacionamento homem e natureza inspirado na espiritualidade. Segundo autora

[…] existem muitos espíritos diferentes, na África. Cada um dele tem um papel específico, ou uma característica específica, que pode nos ajudar. O espírito da terra, por exemplo, é responsável por nossa identidade, nosso conforto, nossa alimentação, e assim por diante. Existe ainda o espírito da natureza, o espirito do rio, o espírito da montanha, o espírito dos animais, da água e dos ancestrais. Espírito em toda parte. (SOMÉ, 2009, p.28) 

A percepção trazida por Somé (2009) coaduna com a prática cultural e ancestral que premeia as diferentes nações de candomblé e as demais tradições de origem africana no Brasil, a qual reverencia o sagrado que habita a natureza, e esta reverência acontece através das rezas, dos cânticos e dos ebós que alimentam NKisese, Yuxibu, Orixás e Voduns [6].

Há um provérbio iorubá que diz que, quando uma entidade espiritual não é alimentada, ela morre, ela deixa de existir. Então, há uma dimensão no plano estritamente religioso, imediatamente religioso, que é a alimentação das entidades espirituais, das dimensões e manifestações do divino […]. (VIDA, 2007, p. 298) 

Ou seja, mais que demarcar territorialidade, o ebó é, antes de tudo, mantenedor da sobrevivência ancestral. Ele alimenta as entidades espirituais e o corpo de quem prepara e oferta. Nogueira (2020) ensina que devemos oferecer parte do que nos mantém vivos, com saúde e alegria, às suas deidades. Com base na exposição, ebó é instersecção entre os ancestrais e os vivos, um geosímbolo que ao ser arriado em lugares estratégicos transmite saberes, energias e, tão importante quanto, grafam a existência do povo negro que tem suas identidades forjadas em territórios afro-brasileiros.

Sendo assim, ainda que limitada pelo tempo, busquei neste texto aplicar a teoria da territorialidade para realizar leituras territoriais, considerando como exemplo, a presença dos ebós arriados no entorno e dentro da Floresta da Tijuca, os quais oferecem uma contribuição fundamental para compreender diferentes epistemologias, grafias humanas e práticas culturais inscritas nos múltiplos territórios.

Notas
  1. Urbanista, Mestra em Estudos Territoriais, ambas as formações pela Universidade do Estado da Bahia – UNEB.
  2. Este ensaio é um dos resultados do projeto “Floresta: território sagrado”, realizado no programa de residência Cidade Floresta (2022), que aconteceu na cidade do Rio de Janeiro.
  3. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia Estatística – IBGE, a população do Rio de Janeiro estimada em 2021 corresponde a 6.775.561/habitantes e mais da metade é representada pela população negra.
  4. Beniste (2016) oferenda ou sacrifício feito às divindades.
  5. O geossímbolo pode ser um lugar, um itinerário, uma extensão que, por razões religiosas, políticas ou culturais, aos olhos de certas pessoas e grupos étnicos assume uma dimensão simbólica que os fortalece em sua identidade (Bonnemaison, 2002: 99-109).
  6. Entidades espirituais.
Referências
  • BONNEMAISON, J. Viagem em torno do território. In: CORRÊA, R.L. & ROSENDAHL, Z. (orgs.). Geografia Cultural: um século. Rio de Janeiro, Eduerj, 2002: 83-132. 
  • BENISTE, J. Dicionário yorubá-português. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2016. 
  • CORRÊA, A. M. O terreiro de candomblé: uma análise sob a perspectiva da geografia cultural. In: Textos escolhidos de cultura e arte populares. Rio de Janeiro, v. 3, n. 1, p. 51-62, 2006. Disponível em: <https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/tecap/article/view/12620>. Acesso: 22 jul. 2022. 
  • FERREIRA, J. G. et al.. A experiência de ser-no-mundo: quilombola, feirante e urbanista. Anais do XIV ENANPEGE. Campina Grande: Realize Editora, 2021. Disponível em: <https://editorarealize.com.br/artigo/visualizar/78763>. Acesso em: 29/07/2022 
  • HAESBAERT, R. O mito da desterritorialização: do “fim dos territórios” à multi- territorialidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004.
  • HAESBAERT, R. Dos múltiplos territórios á multiterritorialidade. Porto Alegre, 2004. Disponível em: <https://www.ufrgs.br/petgea/Artigo/rh.pdf>. Acesso em: 29 jul, 2022. 
  • NOGUEIRA, S. Intolerância religiosa. São Paulo: Pólen, 2020. 
  • LIMA, F. Um ebó artístico-epistêmico: desobediências poéticas em Grada Kilomba. Revista Espaço Acadêmico, v. 20, n. 226, p. 42-54, 2021. 
  • ROSENDAHL, Z. Território e Territorialidade: Uma Perspectiva Geográfica para o Estudo da Religião. In: Anais do X EGAL encontro de geógrafos da América Latina, São Paulo, 2005. 
  • RUFINO, L. Performances Afro-Diaspóricas e Decolonialidade: o saber Corporal a partir de Exu e suas encruzilhadas. Antropolítica. Revista Contemporânea de Antropologia, v.1 n.40, p 54-80, 2016. 
  • SACK, R. Human Territoriality: its theory and history. Cambridge: Cambridge University Press, 1986.
  • SANTOS, J. L. Religião e Florestas. Campinas: Unicamp, v. 12, n. 32, p. 127-132, dez, 1998. 
  • SOME, S. Espirito da Intimidade: os ensinamentos ancestrais africanos sobre maneiras de se relacionar. São Paulo: Odysseus – 2ª ed, 2009. 
  • VIDA, S. S. Sacrifício animal em rituais religiosos: liberdade de culto versus direito animal. Revista Brasileira de Direito Animal, v. 2, n. 2, p. 289-305, 2007.

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