Cidade Floresta

É um projeto especulativo que aproxima a cidade com a floresta, imaginando ambos como ecossistemas complexos, colaborativos e comunicativos. É um convite para pensar os desafios e as potências de um futuro urbano para além do paradigma industrial. Este organiza a vida urbana em torno das necessidades de fábricas e empresas, de trabalhadores e consumidores. Desde os anos 1970, esses paradigmas estão em transformação. São buscas por novas formas de vida e de troca, formas mais autônomas, mais sustentáveis e mais cuidadosas.

Historicamente, a cidade sempre dependeu do campo, de um entorno que a abastece de alimentos, água e ar limpo e que absorve seus efluentes, resíduos e emissões de escape. Esse entorno da cidade foi imaginado pelos projetistas das infraestruturas modernas como um quadro de referência estável, que poderia ser expandido ad infinitum. Os limites eram circunstanciais e tecnicamente ultrapassáveis. Todavia, o imaginado e o vivido não seguiram o mesmo caminho.

Em muitas cidades hoje, no Brasil e no mundo, enfrentamos problemas recorrentes de  escassez de água, ar limpo e comida. Parecem momentos de fracasso local, de falta de planejamento e de modernização de infraestrutura. Mas, em suma, esses momentos provavelmente já anunciem as catástrofes da mudança climática por vir. No modo atual, não haverá recursos suficientes para resolver os problemas que vão surgir por todos os lados. As crises vão se tornar permanentes.

Do outro lado, existem inúmeros projetos experimentais de agricultura urbana, telhados verdes, captação de água de chuva, soluções para esgoto descentralizadas, dentre outros. O foco, parece, está no melhor aproveitamento de recursos e fluxos já existentes e nas tentativas de poluir menos o meio ambiente.

Qual será o ponto crítico para uma mudança mais estrutural a partir dessas experimentações? A floresta poderia ser um novo paradigma para as cidades? O que podemos aprender com a floresta, com as árvores, com os fungos, com sua parte invisível e subterrânea tanto quanto com sua exuberância verde na superfície? Que política urbana podemos praticar a partir da perspectiva da floresta? 

A história e arqueologia da vida indígena na floresta amazônica mostram que a floresta nunca foi a selva do imaginário colonial. Sempre foi uma paisagem cultural habitada por várias espécies, dentre elas, os humanos. A cidade também nunca deixou de ser natureza, co-criação entre espécies. Se a natureza já sempre foi efeito simpoético, que futuro podemos construir e habitar a partir dessa observação? É possível retomar as cidades já existentes e organizá-las a partir de uma inteligência florestal?

Nesse sentido, CIDADE FLORESTA joga um olhar crítico sobre a economia verde emergente que promete soluções técnicas para os desafios do presente, sem questionar as relações que sustentam essas soluções. Mesmo uma economia que aproveita ao máximo os recursos à sua disposição, a chamada economia clímax, não resolveria a maneira como os valores assim produzidos são apropriados e distribuídos. A pobreza continuará sendo uma questão política, tanto quanto a segurança e o respeito às diferenças. É necessário ir além do melhor gerenciamento de recursos e sustentar um espaço político conquistado nas cidades.

Cidade Prisão

Foi depois do furacão Katrina que Mike Davis prognosticou o devir prisão da cidade: Quem não podia fugir a tempo, ficou preso em casa, abandonado pelo poder público, subindo do primeiro andar ao segundo e finalmente ao telhado, se salvando das águas que subiam quando o mar invadiu a cidade. Quem não podia fugir eram as pessoas mais pobres.

A pandemia de covid-19 criou conflitos parecidos. Como o prognóstico do devir prisão da cidade está ressoando depois de um ano de distanciamento, do deixar morrer, da falta de resposta pública e coletiva? Que cidade ainda temos? Enquanto alguns conseguiram criar comunidades de isolamento temporário, saindo da cidade e indo para o campo, a grande maioria das pessoas continuou circulando, pegando ônibus lotados para chegar ao trabalho e dependendo de uma rede de apoio presencial para organizar as tarefas de cuidado com crianças e idosos.

A pandemia nos lembra do compartilhamento radical na cidade: O ar se torna contagioso quando não respeitamos a existência do vírus, um novo participante no jogo da vida. As ruas se tornam rios quando não há espaço suficiente para as forças das águas se expandirem. A pandemia nos lembra também da má distribuição de recursos e espaços e de uma tradição de responder individualmente e no privado às crises coletivas que assim se prolongam de forma desnecessária.

As relações urbanas são particularmente vulneráveis e potentes ao mesmo tempo. Soluções inteligentes, como aquelas desenvolvidas pela Fiocruz junto com as Redes da Maré, implementaram medidas simples e efetivas de comunicação, cuidado e isolamento de pessoas infectadas, o que baixou significativamente o risco da doença matar ou se espalhar. Mas o programa não foi implementado na cidade toda. Falta capacidade ou interesse em pensar a cidade como um todo.

A floresta dentro da cidade

Quando o Rio de Janeiro, em meados do século 19, sofreu uma crise de água, o governo imperial desapropriou terras utilizadas para a plantação de café e iniciou um projeto de reflorestamento de grande escala. Até hoje o Rio de Janeiro tem a maior floresta urbana do mundo. A água que essa floresta gera alimenta cachoeiras e rios, mas ao entrar no espaço urbano esses rios são transformados em valões, transportando dejetos e rejeitos até a Baía de Guanabara que recebe também efluentes industriais.

Estamos novamente vivendo uma crise hídrica no Rio de Janeiro, antes, durante e provavelmente depois da pandemia. Que processo democrático e justo poderia ser imaginado para responder a essa crise que também responde a crise de confiança em uma empresa pública mal gerenciada? A água de cheiro e qualidade péssima conectava a cidade – todos os bairros nesses momentos de crise, sejam ricos ou pobres. Obviamente, o impacto não era o mesmo, mas tinha uma semente de uma experiência compartilhada numa cidade mais e mais dividida territorialmente. Com a privatização dessa empresa a cidade será dividida em zonas por diferentes fornecedores. Como garantir um serviço melhor para todos?

Cidade Maravilhosa

O desenvolvimento econômico não resolve automaticamente questões de violência e falta de segurança. O processo econômico é estruturalmente violento. Qual seria uma forma não-violenta de viver e produzir em cidade?

Ah, e se todas as águas fossem limpas? As nascentes, as cachoeiras, os rios… Que paraíso o Rio de Janeiro poderia ser! Mas essa não é uma cidade maravilhosa, é apenas um lugar maravilhoso para criar uma cidade, como a poeta Elizabeth Bishop enfatizou décadas atrás.

Mesmo imaginando que todas as questões ambientais estariam resolvidas, o Rio de Janeiro permaneceria um lugar violento de confronto entre diferentes forças armadas que lutam para dominar um território lucrativo de especulação imobiliária, tráficos de armas, de drogas, de extorsão e chantagem.

O desenvolvimento econômico não resolve automaticamente questões de violência e falta de segurança. O processo econômico é estruturalmente violento. Qual seria uma forma não-violenta de viver e produzir em cidade? Em vez de assumir a tarefa de proteger uma natureza sempre imaginada em outro lugar, lá fora, podemos criar novas alianças com plantas e animais para conhecer e cultivar nossa própria natureza e (re-) criar jeitos de ser não-violentos? Qual é o lugar das chamadas drogas nesse contexto cuja potência originalmente vem de plantas e cuja variedade surgiu com o uso humano? 

Nesse sentido, falar de Cidade Floresta significa também falar da terceira ecologia, seguindo Félix Guattari, da nossa psique. Os fazedores da agricultura urbana reportam um efeito psíquico benéfico a partir das suas práticas e reverberações positivas nas comunidades. Falar da terceira ecologia significa também falar dos traumas e fazer um trabalho de luto em torno da história dessa cidade. O Rio de Janeiro é o porto que recebeu mais pessoas escravizadas no mundo Atlântico. É um lugar ainda em busca de lugares de memória.

O Rio antes do Rio

Antes da colonização existia uma vida social nesse território, uma FLORESTA CIDADE constituída por mais de 100 aldeias TUPINAMBÁS. As epistemologias e as gramáticas indígenas mostram, que o jeito ocidental de pensar a relação entre cultura e natureza é meramente uma possibilidade entre outras e não necessariamente a mais indicada para os desafios que estamos enfrentando daqui para a frente. A CIDADE FLORESTA é também uma busca por novas teorias políticas e conceitos filosóficos, para sair da relação instrumentalista com a terra que se instalou contra os cosmotheismos e suas capacidades de traduzir diferenças.

Des/naturalizar

A vida na floresta nunca se reduziu à sobrevivência! Perspectivas indígenas e outras perspectivas menores são fundamentais para evitar uma nova naturalização de questões políticas, filosóficas, epistêmicas e estéticas.

Chamar a cidade de “uma selva” faz parte de uma longa história de crítica de trabalho na cidade moderna. Upton Sinclair no romance The Jungle de 1905 fala sobre as condições de trabalho na indústria de carne em Chicago. A selva urbana surgiu como contra imagem à cidade civilizada e pacificada, denunciando-a como de fato despreparada, abandonada, violenta e injusta. Na selva, nessa lógica, a vida se reduz à sobrevivência.

Foi também em Chicago que se formou naquela época uma escola de urbanismo de muita influência que olhou para a cidade como se fosse um corpo que pode ficar doente, como um jardim que precisa de mais cuidado, assim naturalizando relações sociais e históricas.

No momento crítico do presente, podemos observar mais uma tentativa de olhar para “a natureza” como inspiração e, até um certo ponto, esse projeto mesmo convida para isso, porém de uma perspectiva que reconhece o legado colonial e o deixa atrás: A vida na floresta nunca se reduziu à sobrevivência! Perspectivas indigenas e outras perspectivas menores são fundamentais para evitar uma nova naturalização de questões políticas, filosóficas, epistêmicas e estéticas.

Cidade Jardim

Conhecer a história das experimentações em torno da natureza da cidade também pode afinar o senso crítico num processo em direção a uma CIDADE FLORESTA. Já no final do século 19, o movimento pela reforma da vida questionou a economia capitalista e a vida nas cidades industriais. O movimento de Garden Cities começou na Inglaterra e logo se espalhou por toda Europa, particularmente na Alemanha. Primeiro as ideias eram radicais: reforma agrária, redistribuição de terra e autonomia econômica para os habitantes desses conjuntos habitacionais que se instalavam entre o meio urbano e o meio rural. Mas logo o conceito foi integrado em projetos de desenvolvimento urbano, um label para uma vida suburbana com foco em espaços verdes e assim perdeu sua radicalidade. Seja liberal, da esquerda ou da direita, todos se aproveitaram da fantasia de uma relação harmônica entre cidade e campo, enquanto de fato a cidade jardim principalmente acelerou o processo de suburbanização, de urban sprawl. Hoje, talvez, chamamos esse processo de greenwashing.

E de fato, o conceito da Cidade Jardim está em voga até hoje e recentemente ganhou o nome de Cidade Floresta. Trata-se de desenhos de grandes prédios de concreto, mas com áreas externas de varandas, terraços e praças intensamente plantadas. A sustentabilidade desses projetos vai depender da sua capacidade de criar, realmente, um ecossistema habitável para diferentes espécies. Simplesmente plantar mais árvores e plantas não resolve, como mostrou o exemplo de uma “cidade floresta” na China que resultou numa infestação por mosquitos e impossibilitou temporariamente a permanência dos seus habitantes humanos.

Sob a sombra da mudança climática com um aumento previsto de catástrofes naturais, da subida do nível do mar, do aumento de tempestades devastadoras e secas inéditas, para só mencionar alguns, o paradigma que vai determinar a vida em cidade no presente, é o ecológico. Mas tanto o econômico quanto o ecológico são marcados pelo oikos, pela casa, pela esfera do útil e do produtivo, enquanto a esfera da natureza permanece como se fosse em outro lugar, um lugar outro a ser preservado.

CIDADE FLORESTA cria essa dobra entre cidade e floresta, uma aproximação que afirma a diferença entre as duas e busca uma nova relação entre elas. A vida em cidade precisa de territórios vivos e pulsantes para muitos.

Realização

Produção