A horta Dja Guata Porã

Entrada do edifício onde vive Niara do Sol. Foto do autor

10:00. Bella e eu temos um encontro com Niara do Sol. Estamos esperando na entrada do complexo residencial Zé Kéti, onde Niara mora. “Você não pode esperar que a Niara chegue na hora, os indígenas têm seu próprio tempo”, diz Bella. O que aprendi durante minha estada no Rio de Janeiro é que a sensibilidade é fundamental nos primeiros encontros, principalmente porque sou europeu. À medida que Niara nos conduz pelo conjunto habitacional, a vegetação se torna mais exuberante e até arbustos e árvores crescem na frente de seu prédio. Percebo um par de pássaros marrons sentados nos galhos de uma árvore.

Uma placa na área de entrada diz: “Associação Indígena Aldeia Maracanã”. Niara, filha indígena de pais dekariri-xokó [1] e fulni-ô [2], mora nessa aldeia com outros indígenas que foram expulsos da Aldeia Maracanã em 2013. Juntos formaram a “Aldeia Vertical”, um espaço de convivência e relacionamento em um prédio do programa Minha Casa Minha Vida [3]. Juntamente com duas amigas do mesmo prédio, Iracema Pankaruru e Dauá Puri, Niara participou da exposição Dja Guata Porã 2017 [4] no Museu de Arte do Rio (MAR). Ela liderou a “Estação Natureza”, uma horta em frente ao museu. Quando a exposição encerrou, pegou nas plantas e continuou o trabalho nos terrenos que se estendem em torno do edifício da “Aldeia Vertical” até o muro de uma antiga prisão.

Niara nos convida a entrar em seu apartamento. Sentamos e ela começa a nos contar sobre seu trabalho com os museus do Rio, sua família e o uso de diferentes plantas. Na mesa principal estão as vagens marrons. Niara explica: “Isso é feijão guandu, você pode fazer farofa ou cozinhá-lo com beterraba e cenoura, quando temos dor de cabeça, pegamos um pouco de feijão guandu e comemos devagar, depois tomamos café de feijão guandu adoçado com rapadura preta”.

Grão-de-bico cru e cozido. Desenho com cor achiote pelo autor

Quando tento anotar esses detalhes, ela me conta que certa vez um pesquisador veio visitá-la e anotou tudo incorretamente. A razão, diz ela, é que os pesquisadores costumam fazer muitas perguntas, mas não entendem, e isso é porque não praticam. Na horta Dja Guata Porã, Niara oferece aprendizado por meio de experiências multissensoriais: plantar, colher, cheirar, degustar. Todos os dias, as crianças do conjunto habitacional passam um tempo depois da escola na horta Dja Guata Porã. No final da tarde, Niara serve-lhes um almoço caseiro. Ela faz pudins diferentes de açafrão, café, beterraba. No início, as crianças perguntavam: “O que tem aqui?” Ela respondia: “Cheirem, provem e tentem adivinhar os ingredients”. A própria Niara aprendeu assim: “Minha mãe é uma mulher que observa tudo, aprendeu a pintar, aprendeu a fazer crochê e fazer doces até da ‘Francia’, ela nunca perguntava, ela observava, e quando chegava em casa, ela tentava fazer. Fui criada dessa forma”. Acho que é verdade para mim: depois de ver chaya, uma planta da era Maia, pela primeira vez e provar seu suco na casa de Niara, consegui identificá-la em outras partes da cidade do Rio.

Niara gosta de trabalhar com crianças porque elas aprendem mais rápido e porque podem mudar a cabeça dos adultos: Algumas crianças começaram a perguntar às mães por que não lhes davam sucos tão saudáveis ​​quanto os de Niara. Como resultado, algumas mães até começaram a plantar na frente de seus próprios prédios. Isso tem um grande impacto em um lugar onde as pessoas estão acostumadas a jogar seu lixo em espaços verdes.

Bolo de mandioca e suco de jenipapo. Desenho com cor achiote pelo autor

Na horta Dja Guata Porã, os visitantes encontram frutas e ervas em diferentes estágios e também alimentos: “Aqui vocês viram a árvore de jenipapo, vocês viram a fruta e tomaram o suco. E na próxima vez vocês podem comer a geleia e lá, quando a gente fizer um almoço para ter uma boa digestão, podemos tomar o licor de Jenipapo”. As plantas de Niara não são apenas nutritivas, mas muitas vezes ecologicamente e medicinalmente relevantes. O já mencionado feijão guandu não é apenas um bom alimento proteico, mas também um fixador de nitrogênio e pode auxiliary no tratamento de vários problemas de saúde.

A horta Dja Guata Porã não é uma horta normal, mas um viveiro de mudas de plantas perenes principalmente não convencionais: achiote, jenipapo, algodoeiro. Os visitantes pedem regularmente mudas para crescer em diferentes partes do Rio e até em todo o Brasil. A horta também não está disposta de maneira convencional em fileiras individuais. Niara está acostumada a plantar tudo junto, atentando para as preferências e sinergias das plantas. Seu jardim atende à definição de agrofloresta: “a integração deliberada de árvores com culturas agrícolas e/ou pecuárias, simultânea ou sequencialmente na mesma unidade de terra”(Nair, 1993). Quando pergunto a Niara sobre agroflorestas e PANCs [5], ela ressalta que esses conceitos só recentemente foram definidos. O conhecimento que ela aplica é o de seus ancestrais e foi transmitido e adaptado ao longo de milênios. É por isso que a prática de Niara vai muito além do que é academicamente chamado de “agroflorestal” e “sustentável”.

Algumas plantas têm um significado profundo em suas tradições indígenas, como o suco vermelho de achiote, que é usado para pintura corporal: “Pintar os olhos tem dois significados: pode ser guerra, mas também uma comemoração muito importante, depende do desenho dos olhos, todo grafismo da gente tem significado, muitas vezes o grafismo tem símbolos, então pode ser um símbolo de cura, um símbolo para criar uma criança ou um símbolo para colocar na terra se você quiser plantar”.

Achiote planta. Desenho com cor achiote pelo autor

Quando planta e colhe, Niara não apenas se conecta com outras pessoas, mas também leva em conta as preferências dos animais: “As sementes de chaya são comidas pelos pássaros e eu como as folhas”. Quando ela semeia, ela espera por boas condições lunares e deixa a muda determinar o local da semeadura. Ela aproveita o tempo para ouvir os “horários de outros ciclos de vida – espécies, clima, interações localizadas – que constituem nichos temporais em uma ecologia particular”(de la Bellacasa, 2017).

Niara também encontra dificuldades em sua horta. Especialmente no inverno seco brasileiro, as plantas precisam ser regadas, mas o complexo de apartamentos muitas vezes sofre com a falta de água. Niara está chateada porque o prédio não tem calhas de chuva para coletar a água da chuva e usá-la para regar a horta. Ela toma muito cuidado em usar apenas uma pequena quantidade de água para lavar a louça e tomar banho, usando a maior parte para regar suas plantas. Ela também integra suas plantas em suas práticas ecológicas diárias: “Uma semente da moringa limpa 500 litros de água, cada pessoa pode fazer experiência, pegue uma caixa de água muito suja e coloque uma semente. Em três dias a água é maravilhosa e se pode consumir”.

Sementes de Moringa em uma tigela com água suja. Desenho com cor achiote pelo autor

Niara teve que lidar não apenas com problemas de água, mas também com os maus hábitos dos moradores do conjunto habitacional. No início da horta, em 2016, as pessoas estavam arrancando as plantas. Niara reagiu interpretando uma bruxa que dizia às pessoas que vinham para arrancar algo: “Se você colocar a mão nisso, você congelará”. As pessoas então desistiram. Niara também plantou estrategicamente as plantas mais delicadas e valiosas entre as mais robustas até que se tornassem mais fortes e pudessem se defender.

Fica claro para mim que a horta Dja Guata Porã não é um lugar idílico, mas marcado por encontros produtivos, e também por conflitos. Como observa Bevilacqua: “Os esforços também mostram toda a criatividade e as dificuldades de uma experiência plural em vários sentidos: indígenas de diferentes etnias convivendo em um prédio dentro de um condomínio não indígena e desenvolvendo uma horta cujos frutos não são destinados apenas para humanos” (Bevilaqua, 2021). Hortas como a de Dja Guata Porã podem nos ensinar a ouvir as escalas de tempo de diferentes grupos de etnias e espécies que vivem nos espaços urbanos. Levar em conta formas expandidas de ser cria as bases para um urbanismo multiespécies. Para conhecer de verdade a horta Dja Guata Porã, é preciso visitá-la sempre que possível. E como amigo de Niara, você faz isso de uma forma ou de outra.

Niara do Sol. Desenho com cor achiote pelo autor

Notas
  1. O povo indígena Kariri-Xocó, com cerca de 2.500 pessoas, vive em uma terra indígena de cerca de 699 hectares no município de Porto Real do Colégio, em Alagoas, às margens do Rio São Francisco(Museu Nacional do Rio de Janeiro e Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), 2018).
  2. Os Fulni-ô formam um grupo indígena que vive próximo ao Rio Ipanema, no município de Águas Belas, no estado de Pernambuco. Não há informações sobre o ano em que foram assentados pela primeira vez. O certo é que em meados do século XVIII já eram conhecidos pelo nome de “Carnijós”(Vasconcelos & Tahyrine, 2022).
  3. Minha Casa, Minha Vida é um programa do governo que subsidia pessoas de baixa renda a comprar moradias populares construídas por empreendedores privados. Niara critica que o prédio é mal construído e que a água entra em seu apartamento quando chove. Ela não recebe nenhuma compensação por isso e ao mesmo tempo tem muitos custos por mês (taxas de condomínio, luz, etc.).
  4. Dja guata porã é uma expressão que na língua guarani significa “andar bem” e “andar junto”. É também o título de uma exposição que aconteceu no Museu de Arte do Rio entre maio de 2017 e março de 2018.
  5. As plantas alimentícias não convencionais, conhecidas pela sigla PANC, são plantas comestíveis que surgem espontaneamente no Brasil. O biólogo Valdely Kinupp definiu este termo em 2014. Ele é cada vez mais utilizado em contextos acadêmicos e populares. Hoje, mais de 10.000 PANCs foram identificadas.
References

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Produção